Muitos comentadores discordaram sobre o estatuto do conceito de vontade de potência. Seria a vontade de potência um princípio metafísico, uma ficção reguladora, uma hipótese cosmológica, uma tese psicológica ou a chave para uma filosofia antimetafísica? Essa diversidade de opiniões decorre do fato de que esse conceito só encontra um maior desenvolvimento na massa de fragmentos póstumos dos anos oitenta, para não mencionar a ambiguidade que reveste a própria filosofia de Nietzsche. Mesmo assim, há uma leitura, hoje quase canônica, sobre o que, em linhas gerais, se poderia entender com esse conceito, independentemente de que estatuto se reserve para ele. A chamada (a depender do comentador) doutrina, ontologia ou cosmologia da vontade de potência consistiria em uma tese (ou ao menos uma hipótese) que poderia ser sintetizada da seguinte maneira: o mundo compreendido como vontade de potência consiste em centros de forças em relações antagônicas. A vontade de potência, como força em constante efetuação, organiza-se em estruturas de duração variável, tendo em vista o seu acréscimo. Essa formação de domínio envolve delimitação e demarcação de seu campo de atuação. Cada centro de forças é inseparável de uma ação sobre seu meio. Cada um deles, estando relacionado com todos os outros existentes, possui uma posição, “um ponto de vista”, a partir da qual ele organiza o todo; cada um deles possui uma perspectiva do mundo. Essa perspectiva, por sua vez, é inseparável daquilo que Nietzsche chama de interpretação. A vontade de potência, enquanto essa força interpretativa, também é uma interpretação. A vantagem da interpretação de Nietzsche seria a de que ela se reconheceria como interpretação. Com isso, ele não resvalaria em um relativismo, já que assumiria a superioridade de sua interpretação, superioridade essa que residiria no reconhecimento de seu caráter perspectivo e em um critério de verdade: o aumento do sentimento de potência.
Considerando essa leitura uma síntese fiel da relação entre vontade de potência, perspectivismo e interpretação, duas questões se colocam. Em primeiro lugar, ela não deixaria de ser relativista, já que professa a multiplicidade de interpretações e tem um critério de verdade – o aumento da vontade de potência – maleável o suficiente para que interpretações conflitantes e incomensuráveis possam conviver. Em segundo lugar, sua argumentação apresentaria uma escandalosa circularidade: a superioridade de sua interpretação pressupõe a aceitação de sua noção de interpretação, e seu critério de verdade ou de superioridade de interpretações pressupõe a aceitação da vontade de potência. No primeiro caso, os problemas que essa noção tem de enfrentar são os mesmos encarados por teses relativistas: se toda teoria é interpretação, a própria posição de Nietzsche não seria apenas mais uma interpretação convivendo com outras interpretações incompatíveis entre si? E, por isso mesmo, ela não seria autorrefutável, pelas mesmas razões pelas quais Platão refutou o relativismo de Protágoras? No segundo caso, se se defende uma superioridade da interpretação nietzschiana, coloca-se a questão sobre o critério que determina essa superioridade: se ela residir no fato de se assumir como interpretação ou no fato de aumentar o sentimento de potência, não estaria Nietzsche assim incorrendo em uma argumentação circular? O objetivo de um artigo meu – a sair nos Cadernos Nietzsche 27 – é discutir essas duas objeções à luz das respostas que lhes foram oferecidas por diversos comentadores.
Considerando essa leitura uma síntese fiel da relação entre vontade de potência, perspectivismo e interpretação, duas questões se colocam. Em primeiro lugar, ela não deixaria de ser relativista, já que professa a multiplicidade de interpretações e tem um critério de verdade – o aumento da vontade de potência – maleável o suficiente para que interpretações conflitantes e incomensuráveis possam conviver. Em segundo lugar, sua argumentação apresentaria uma escandalosa circularidade: a superioridade de sua interpretação pressupõe a aceitação de sua noção de interpretação, e seu critério de verdade ou de superioridade de interpretações pressupõe a aceitação da vontade de potência. No primeiro caso, os problemas que essa noção tem de enfrentar são os mesmos encarados por teses relativistas: se toda teoria é interpretação, a própria posição de Nietzsche não seria apenas mais uma interpretação convivendo com outras interpretações incompatíveis entre si? E, por isso mesmo, ela não seria autorrefutável, pelas mesmas razões pelas quais Platão refutou o relativismo de Protágoras? No segundo caso, se se defende uma superioridade da interpretação nietzschiana, coloca-se a questão sobre o critério que determina essa superioridade: se ela residir no fato de se assumir como interpretação ou no fato de aumentar o sentimento de potência, não estaria Nietzsche assim incorrendo em uma argumentação circular? O objetivo de um artigo meu – a sair nos Cadernos Nietzsche 27 – é discutir essas duas objeções à luz das respostas que lhes foram oferecidas por diversos comentadores.
2 comentários:
Beleza de apresentação. Arrisco duas coisinhas: 1) remeter asserções, crenças e valores a "perspectivas", "ponto-de-vista", "condição", "poder", etc., não é - mais - tão exclusivamente nietzschiano (nem dramático) assim; é quase que um traço geral de toda a filosofia contemporânea, bem comportadinha tb; 2) preocupações (lógicas) com circularidade, etc. não devem merecer mais muita atenção (fora de argumentações circunscritas, dentro de um paradigma compartilhado); apoiammos crenças em outras crenças mesmo (e fatos interpretados), dentro de contextos e práticas, com tudo mais que conseguirmos tomar em consideração; 3) volta e meia recorro a essa noção de vontade de potência, mas sequer cogito de imaginar que possa ser 'o' princípio explicativo do que quer que seja; e 4)depois de passar a uma posição "relativista" (i.e.,'pós-metafísica', 'não-fundacionista') permaneço do mesmo jeito envolvido em estabelecer e defender posições melhores e mais verdadeiras. / É isso?
Interessante. Gostaria de acrescentar que os pontos 1, 2 e 4, que Crisóstomo trouxe, são, basicamente, o que caracteriza Nietzsche como um (proto)pragmatista - ao menos na visão de Rorty. Ou seja,(1) a submissão de conceitos ou teses a crenças, (2) a consideração de que essas crenças são frutos de contextos e práticas e (3) o declínio da verdade "redentora" e a assunção de um paradigma da contingência que, todavia, não nos retira a posição ("etnocêntrica"?) de que meus valores (porque meus) sao melhores. Em suma, parece mesmo haver algo de pragmatista nisso, concordam?
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