"Filosofia da Ação" - Ernst Tugendhat

"(...) Se quero perguntar como se deve ensinar filosofia, tenho que começar com um conceito: o que é a filosofia? Vou dizer simplesmente que penso que, em tudo o que se faz em filosofia, em todo o percurso histórico da filosofia, pode-se dizer que é muito importante, é central, na minha opinião, a aclaração de conceitos. Penso que a filosofia consiste no esclarecimento de conceitos centrais de nosso entendimento. Isso significa que o que se deve aprender em filosofia não são informações, mas é antes uma ação. O aluno tem que aprender uma ação. Em que consiste esta ação? Numa boa aclaração e numa boa argumentação – são essas duas coisas, eu pensaria. Creio que existe uma frase de Kant em que ele afirma que o que se pode aprender não é filosofia, mas é filosofar. Isso é dizer a mesma coisa, isto é, dizer que se trata de uma ação. Significa que o que se aprende em filosofia não é uma doutrina, mas uma 'arte' – arte no sentido amplo, naturalmente. (...)

Temos uma grande literatura em filosofia: tanto o que chamamos de tradição filosófica, os grandes autores, como também temos uma grande literatura contemporânea. Isso cria um problema naturalmente: onde devemos colocar a ênfase, na literatura contemporânea ou nos grandes filósofos? Penso que a ênfase deve estar em ambas as coisas. O que conduz ao problema do currículo: o que é um bom currículo? (...) Creio que ter um bom currículo é um problema muito grande, mas entendo que o currículo deve ser logo de saída uma mistura do ensinamento histórico com algo mais do que isso. (...) Devemos ter ensinamentos históricos e devemos ter já no começo o ensinamento da filosofia do nosso tempo. Não devemos esquecer, no entanto, que todo esse tratamento da filosofia histórica e da filosofia contemporânea é só um instrumento para aprendermos, nós mesmo, a pensar. Os estudantes mesmos. E os professores, os mestres e os estudantes são mais ou menos a mesma coisa, todos devem fazer mais ou menos a mesma coisa. É o mesmo que em qualquer arte. (...) Vocês tiveram, na América Latina, um tempo que a filosofia consistia na doutrina escolástica. E depois, agora, há uma possibilidade de, em vez de escolástica, aprender o que se chama de 'os grandes filósofos', seu pensamento. Mas isso por si não é ainda tão importante. Agora vem um ponto, talvez contido na palavra arte: quando nos ocupamos dos outros filósofos, não devemos estar interessados em aprender seu sistema em si – isso não tem nenhum interesse. (...) Eu tenho grandes dificuldades quando vou dar um curso e devo escolher um autor, porque sei que a única coisa que vou poder fazer é explicar por que ele está errado nisso, errado naquilo. E é isso o que os estudantes têm de aprender...

(...) Não sei exatamente como é aqui em Salvador, na UFBA, mas, por exemplo, em Goiânia, na UFG, o sistema se mostra muito pouco livre. Nos EUA, há uma certa liberdade. E por que se deve ter uma certa liberdade? Parece-me evidente: porque se pode dizer que em filosofia certas coisas são importantes, mas há muito pouco que se pode dizer que é necessário. Nesse ponto, a filosofia é muito diferente das ciências; nela, de nada se pode dizer decididamente que é necessário, e isso significa que o estudante deve ter liberdade de escolher. (...) outra coisa importantíssima: a necessidade de que o estudante comece a escrever muito cedo – que comece imediatamente, eu deveria dizer. (...) Porque tudo o que se faz, em geral, é ler, tanto os grandes filósofos do passado como os filósofos contemporâneos, somente porque eles são exemplos de pensar. Ora, para poder ter esse exemplo deve-se fazer a mesma coisa que eles, e para isso não é suficiente estar numa aula e fazer as perguntas. É preciso escrever. (...)

Agora, talvez, em muitas universidades e departamentos, caiba pergunta-se em que grau insistir sobre os grandes filósofos, e em que grau insistir sobre problemas, tratar dos problemas em relação aos ensaios contemporâneos. Creio que na América Latina, o déficit está do lado dos ensaios contemporâneos (...). Depois de algum tempo, entendi que as lacunas que se tem no conhecimento do conjunto de todos os filósofos são inevitavelmente imensas. Temos que estar dispostos a admitir que cada um de nós tem grandes lacunas nesse conhecimento, e que isso não é importante. Importante é poder pensar sobre certas coisas, e também entender que sobre outras não temos conhecimento, não sabemos tanto.
De qualquer maneira, a idéia, equivocada, que talvez ainda exista no Brasil, e que certamente tivemos na Alemanha no tempo em que estudei, é de 'compreender o desenvolvimento da filosofia ocidental'. Isso, porém, não é tão interessante, porque a filosofia ocidental não constitui um todo, não é uma coisa, não é 'algo'. Creio que se pode muito bem fazer filosofia ainda que não se conheça muitos dos filósofos mais importantes.
(...) É evidente que, para qualquer pessoa que tenha estudado alguma ciência, que, nela, tem-se que aprender muito, aprender simplesmente informações. Em filosofia é diferente; tem-se pouco o que simplesmente aprender. Mesmo assim há gente que pensa que aprendeu filosofia porque sabe muito do que Kant disse, do que Hegel disse, etc., mas não sabe pensar. Isso não vale nada. (...)"*

*parte do texto "A filosofia como exercício na universidade", in: "A Filosofia Entre Nós" / Org. José Crisóstomo de Souza. - Ijuí : Ed. Unijuí, 2005.

SOBRE O AUTOR: Ernst Tugendhat nasceu em Brno, na Tchecoslováquia (hoje República Tcheca) e é um dos mais destacados filósofos do nosso tempo, importante nos estudos da filosofia analítica da linguagem. Nessa linha de investigação dedicou-se sobretudo à moral, em particular à questão de sua fundamentação numa sociedade secularizada. É doutor em filosofia pela Universidade de Freiburg (1956) e Pós-Doutorado na Universidade de Münster (1956-58). Ensinou em diversas universidades alemãs durante a maior parte de sua carreira docente, e, desde 1991, também na América Latina e no Brasil.

Sobre o grupo

(Em sentido horário: Hegel e alunos; Rorty; Jovens Hegelianos em discussão; Habermas)

O grupo foi formado em 2009.1 e iniciou suas atividades efetivamente em 2009.2, com reuniões quinzenais na Biblioteca Central da UFBA – em Ondina. O objetivo, desde o início, era desenvolver um padrão de estudo e investigação filosóficos que não se restringisse ao trabalho de "exegese" e "comentário" de obras canônicas, mas tivesse como referência primordial o diálogo com a filosofia atual e mesmo com o nosso tempo. A formação se deu rapidamente pela convergência dos interesses do orientador com os dos demais membros, e logo foi traçado um perfil geral para o itinerário acadêmico que o grupo deverá percorrer. Perfil esse que destaca como principais tópicos de atenção o movimento jovem hegeliano, o pragmatismo e outras manifestações filosóficas do século XX e XXI, que contemplem as diretrizes da cultura numa dimensão mais política e social.

O título Poética Pragmática diz respeito à proposta filosófica do orientador, José Crisóstomo de Souza, que quer nortear-se mais pela noção de poiésis (no sentido de criação) do que de práxis (no sentido de ação) guiando-se no interior do movimento pragmatista lido como desdobramento do movimento jovem hegeliano. Essa proposta engloba ou, ao menos, toca o que interessa às pesquisas desenvolvidas individualmente pelos demais membros porquanto envolve os pensadores e temas objetos dessas pesquisas.


Textos iniciais de interesse:

  • ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.
  • HABERMAS, Jürgen. Discurso Filosófico da Modernidade.
  • JAMES, William. Conferências sobre Pragmatismo.
  • MARX, Karl. Teses ad Feuerbach. In Ideologia Alemã.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Verdade e Mentira no sentido extra-moral.
  • RORTY, Richard. Trotsky e as Orquídeas Selvagens.
  • _______, Público e Privado. In Contra os chefes, contra as oligarquias.
  • SOUZA, José Crisóstomo de. A filosofia como coisa civil. In: A Filosofia Entre Nós.
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