A Fabricação do Outro

Texto publicado no jornal A Tarde (Salvador-BA), no dia 21 de julho de 2010:



O discurso em defesa das identidades e diversidades tem se tornado hegemônico em certos espaços sociais. Constatamos este fato como uma conquista histórica, um avanço em relação a uma mentalidade excludente e homogeneizante do passado. A identidade reclamada como direito a diferença e a diversidade como manifestação da liberdade de ser o que se é são pré-requisitos fundamentais das sociedades democráticas. Mas bons consensos não raramente se deterioram em perniciosas ideologias. Deixam de ser produto da reflexão instauradora e se convertem em dogma religioso que ameaça a liberdade e a autonomia. O triunfo do particular e o declínio da universalidade nos cobram um preço. A defesa de um ponto de vista relativo, mormente se converte na incapacidade de dizer não ao absurdo.
Herdeiro do volksgeist (espírito do povo), da defesa da cultura local e da comunidade orgânica, o discurso da identidade surge para contestar a ameaça de uma razão universalista que presunçosamente nos constrange em seu controle uniformizante. A manutenção das diferenças se tornou um mecanismo de resistência à imposição de juízos de valor e de verdade. Contra a supremacia do racionalismo monológico, adotamos a variedade e complexidade das diferentes culturas e modos de existir. Uma suspeita se levantou sobre as promessas iluministas de emancipação via o esclarecimento. Já não teríamos parâmetros universais para julgar o que é certo ou superior. A filosofia das luzes fracassou no seu intento de tornar o homem autônomo, pois não o reconheceu em sua diversidade.
A humanidade abstrata, sem realidade corpórea, sem cor e sem marcas cede a construção de um homem de carne, com pertencimento territorial e histórico. A tentativa de colocar as culturas numa escala de valores (onde o ocidente ocuparia o topo) se revelou cientificamente falsa e politicamente nefasta. Toda valorização se denuncia como violência, como etnocentrismo mal disfarçado. Nasce o sujeito do contexto, testemunha do seu tempo, das tradições e de toda contingência possível. A filosofia da descolonização (síntese entre o marxismo e a etnologia) tomou forma e corpo permitindo aos europeus ilustrados expiar suas culpas pelos crimes cometidos na defesa do seu modelo de civilização.
O cultivo do que é local, particular e acidental se opõe ao que é normativo e aniquila o risco de corrosão da identidade cultural. Até a ciência deverá converter-se numa etnociência, quiçá cumprindo o vaticínio premonitório de Lichtemberg no século XVIII: “Hoje, procura-se difundir por toda parte o saber, quem sabe se em alguns séculos não existirão universidades para restabelecer a antiga ignorância?” A palavra de ordem é “respeite as diferenças”. Mesmo que isto às vezes pareça um mero pretexto para abandonar os “diferentes” à própria (falta de) sorte.
Tolerância, capacidade de conviver com os contrários, não se desconcertar diante do estranho, suportar (sem agressividade) o agonismo da vida pública são os maiores ganhos da defesa das identidades. Contudo, ao lado disto, assistimos ao efeito inverso num processo de narcisismo social que produz resultados desastrosos. Prisioneiros de suas identidades, alguns grupos sociais se armam contra os outros que eles não são. A defesa de seu grupo facilmente se transforma em recusa ao que é outro. Já vimos os alemães transformarem seu orgulho nacional em nazismo e muitos grupos que defendiam direitos iguais praticarem o racismo às avessas. Arvoram-se a determinar o ser dos outros, reduzindo-os a uma identidade definida pela negação da alteridade. O problema não está na identidade que assumimos ou na diversidade que livremente escolhemos e nos integramos. O perigo mora, ao lado. O contraefeito de boa parte dos discursos em defesa da identidade está no recrudescimento da visão relativa ao outro, da identidade que lhes é outorgada por oposição complementar. O outro é um não-eu. O mecanismo de fabricação do outro pela negação de identidade e pertencimento a tal ou qual grupo específico se constitui a face excludente e homogeneizante do discurso que prega a inclusão das (suas) diferenças.

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