A modernidade filosófica: Habermas contra Hegel

 Texto do Prof. Dr. Ricardo Musse sobre a leitura de Habermas em O Discurso Filosófico da Modernidade da filosofia de Hegel e Kant.

Publicado em: http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/09/06/a-modernidade-filosofica-habermas-contra-hegel/


A modernidade filosófica: Habermas contra Hegel

Por Ricardo Musse*

Em O discurso filosófico da modernidade, Jürgen Habermas elege Hegel como o filósofo paradigmático da modernidade. Kant, considerado tradicionalmente, desde a interpretação hegeliana, como o nome central da modernidade filosófica, é relegado, assim, à condição de mero precursor:
Kant exprime o mundo moderno em uma construção intelectual. Isso significa, porém, apenas que os traços essenciais da época refletem-se na filosofia kantiana como em um espelho, sem que Kant tenha compreendido a modernidade enquanto tal. É somente de um ponto de vista retrospectivo que Hegel pode entender a filosofia de Kant como uma autoexposição da modernidade (Habermas, Der philosophische Diskurs der Moderne, p. 30).
Para alterar a hierarquia tradicional, Habermas elabora uma nova concepção de modernidade. Para tanto, partindo da diferenciação sociológica entre modernidade e modernização, procura restabelecer o vínculo, ausente nas teorias correntes da modernização, entre modernidade e racionalidade. Destaca, assim, as relações internas entre o conceito de modernidade e a maneira como esta compreende a si mesma, inserindo-a no horizonte cultural do racionalismo ocidental.
Segundo Habermas, a modernidade só se percebe como uma época histórica quando, ignorando o modelo das épocas exemplares do passado, adquire consciência da necessidade de extrair de si mesma suas normas. Uma vez redefinida a modernidade a partir da questão de sua autofundação, a ênfase recai sobre o seguinte ponto: como pode a modernidade fundar-se, posto que, para tanto, ela só dispõe de seus próprios meios, só pode remeter-se a ela mesma?
Nesse novo contexto, no padrão determinado pela autoreflexão da modernidade, a filosofia de Kant ocupa um modesto segundo plano. Com o redimensionamento da questão, toda a primazia cabe a Hegel; este teria sido o primeiro filósofo a desenvolver com clareza tal conceito de modernidade:
Hegel é o primeiro a alçar em problema filosófico o processo de ruptura da modernidade com os preceitos normativos (Normsuggestionen) do passado, que a contornam. Certamente, a filosofia dos tempos modernos, da escolástica tardia até Kant, no quadro de uma crítica da tradição que integra as experiências da Reforma e da Renascença e também reage aos inícios da moderna ciência da natureza, já exprime a ideia que a modernidade tem de si mesma. Mas é somente no final do século XVIII que o problema deautocertificação (Selbstvergewisserung) da modernidade toma uma forma tão aguda que Hegel pode perceber essa questão enquanto problema filosófico, e mesmo fazer dela o problema fundamental de sua filosofia (Habermas, Der philosophische Diskurs der Moderne, p. 26). [1]
No entanto, nessa reconstrução da ideia que a modernidade fazia de si mesma, Habermas reconhece, nos trechos dedicados à filosofia hegeliana, que o próprio Hegel localiza a essência do mundo moderno em Kant. Aquilo que Hegel considera como o princípio dos novos tempos teria sido extraído de uma análise da filosofia moderna, mais propriamente, da subjetividade abstrata do cogito ergo sum de Descartes e da figura da autoconsciência delineada por Kant. [2]
Convém, portanto, no exame das implicações dessa nova interpretação da problemática da modernidade, crucial para o esclarecimento do projeto filosófico de Habermas, confrontá-la com a leitura, hoje clássica, que Hegel fez dessa questão.
Hegel emprega modernidade, na acepção histórica, para designar uma época – os tempos modernos – marcada por acontecimentos decisivos como a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Porém, ele não se limita apenas a uma caracterização determinada por eventos históricos; preocupado em estabelecer todo o sistema das condições de vida, descortina o princípio desses novos tempos numa figura filosófica: a subjetividade. Assim, para Hegel, na modernidade tanto a vida religiosa, o Estado e a sociedade, como a ciência, a moral e a arte são modificados, enquanto manifestações, a partir do princípio da subjetividade. [3]
Em suas Lições sobre a história da filosofia, Hegel estabelece, para essa disciplina, uma tripla tarefa: (a) salientar o vínculo entre os sistemas filosóficos e o elemento histórico; (b) superar a concepção que articula os sistemas de modo fortuito, organizando-os em uma sucessão necessária; (d) demonstrar a efetividade da proposição que afirma a razão como uma potência unificadora, mostrando que todas as filosofias representam aspectos necessários de um mesmo princípio. [4]
Um dos propósitos de Hegel consiste em demonstrar que na filosofia, à semelhança da lei de Lavoisier, nada se perde, que todos os princípios se conservam, que os sistemas filosóficos produzem conceitualmente a reconciliação que o espírito absoluto almeja entre a finitude e o eterno. [5] Ao considerar a história da filosofia como um momento do movimento unitário da ideia, Hegel destaca na filosofia moderna principalmente a tematização e compreensão da unidade de pensamento e ser. Nesse sentido ele a reelabora como uma construção destinada a captar aquilo que seria o mais recôndito, isto é, o Conceito [6]:
O produto dos tempos modernos é captar essa ideia enquanto espírito, como a ideia que se sabe (sich wissende Idee). Para prosseguir da ideia que sabe para osaber-se da ideia (Sichwissen der Idee), pertencendo a uma oposição infinita, a ideia alcançou a consciência de sua absoluta cisão (Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, p. 458).
A época moderna é marcada, portanto, por uma cisão entre o transitório e o eterno. Nela, a inteligência desperta para o finito, busca uma conciliação com o presente; o mundo passa, então, a ser julgado segundo seus próprios critérios, adotando a razão como árbitro. Desse modo, a subjetividade torna-se o princípio e a autoconsciência, o ponto de vista dos novos tempos. No entanto, ao tomar a reflexão como fundamento, instalando como princípio o pensamento que parte de si mesmo, a modernidade gera, por meio da contraposição entre pensar e ser, um incessante conflito entre o finito e o infinito. [7]
Descartes estabeleceu a certeza como a unidade de pensamento e ser, porém, será com Kant que o pensamento adquire plena consciência da subjetividade. Assim, segundo Hegel, no quadro geral de um progressivo reconhecimento da liberdade, a filosofia kantiana, corresponde teoricamente à Aufklärung e pode, então, ser propriamente definida como uma filosofia da subjetividade. [8]
Para Habermas, entretanto, Hegel não conseguiu resolver a questão que a modernidade se coloca, ou seja, discernir em si mesma suas próprias garantias. Atribui seu erro à tentativa de resolver o conflito entre o atual e o intemporal, tal como abordado pela modernidade filosófica, dentro dos limites de uma filosofia do sujeito. Hegel teria redefinido a razão a partir da pressuposição de um absoluto, de modo a torná-la capaz, enquanto saber absoluto, de unificar a cisão provocada na modernidade pelo princípio da subjetividade, mas, assim, não escapa das aporias de uma dialética da razão. [9]
Essa censura a Hegel, no entanto, desvenda a intenção de Habermas. Para ele, a tarefa consiste em desenvolver uma nova concepção de modernidade que, atenta ao fracasso da solução hegeliana, não mais esteja assentada sobre o princípio da subjetividade. Nessa direção, elabora as premissas de uma razão comunicacional, de uma teoria da intersubjetividade que imagina apta a superar o paradigma da filosofia da consciência. [10]
Não parece descabido, portanto, concluir que a controvérsia sobre o lugar da filosofia kantiana na modernidade não pode ser dissociado das divergências insuperáveis acerca das determinações do próprio conceito de modernidade. Quando Habermas nega ao princípio da subjetividade e à estrutura da autoconsciência a capacidade de satisfazer a necessidade, da modernidade, de orientações normativas, o faz, a partir de outra definição de modernidade. Assim, se a principal contribuição de Kant, a compreensão da estrutura da subjetividade, deixa de ser – na ótica de Habermas – marco divisório dos tempos modernos, como estabelecera Hegel, é porque se pensa os tempos modernos, em outro perfil, privilegiando o movimento de busca de seus fundamentos. [11]
Isso não significa que Habermas relegue Kant completamente. O que ele releva, no entanto, são aspectos outrora desvalorizados como a concepção kantiana de uma razão mitigada. O mérito de Kant teria sido, então, de não ter experimentado como cisões as diferenciações que cindiram a razão, assim como, as articulações formais que intervém na cultura e na divisão em esferas. Ao substituir o conceito substancial de razão, por uma concepção onde a razão possui uma unidade apenas formal, Kant teria permitido a cada domínio, a cada esfera estabelecer fundamentos próprios.

[1] Cf. também Habermas, op. cit., p. 13 e 57. Para Habermas, a importância de Hegel advém não só de ser o primeiro filósofo a tomar consciência do problema da modernidade, mas principalmente porque é a partir da solução dada por sua filosofia a essa questão que podemos situar os seus sucessores. Ampliando o escopo e reatualizando a classificação de Löwith entre velhos hegelianos, jovens hegelianos e neohegelianos (Cf. Löwith, Von Kant zu Nietzsche, p. 65-152) a divisão habermasiana entre jovens hegelianos, neo-conservadores e jovens conservadores abrange desde a imediata posteridade a Hegel até a filosofia contemporânea. Para uma tipologia baseada nos mesmos pressuposto e, no entanto, distinta, cf. Habermas, Modernidade versus pós-modernidade, p. 90-1.
[2] Cf. Habermas, op. cit., p. 29.
[3] Cf. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, parágrafo 124.
Habermas distingue, no termo subjetividade, quatro conotações: “[...] (a) individualismo: no mundo moderno as individualidades (peculiaridades)(Eigentumlichkeit) infinitamente particulares podem fazer valer suas pretensões; (b) direito à crítica: o princípio do mundo moderno exige que aquilo que cada um deve reconhecer lhe apareça como algo justificado; (c) autonomia da ação: é próprio dos tempos modernos querer estar de acordo com aquilo que fazemos; (d) finalmente, a própria filosofia idealista:Hegel considera como o produto dos tempos modernos que a filosofia atinja o saber de si da ideia” (Habermas, Der philosophische Diskurs der Moderne, p. 27).
[4] Cf. Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, p. 461.
[5] Hegel pensa a filosofia nos termos de uma consumação. A meta da construção hegeliana do movimento dialético do espírito como algo imerso no elemento da história é o saber absoluto. Assim, no mundo moderno, o princípio da subjetividade penetra na realidade e a reconciliação adquire a sua efetividade enquanto espírito. No entanto, quando o espírito alcança seu pleno ser e saber, isto é, a autoconsciência, consuma a sua história (cf. Löwith, op. cit., p. 52-58).
[6] Cf. Hegel, op. cit., p. 69, 266-7 e 314.
[7] Para Hegel, as filosofias da reflexão separam o infinito do finito e tornam inconcebível a sua unidade. O infinito por ela proposto, na realidade, é algo finito, pois o que se erige em absoluto é apenas a reflexão ou o entendimento (cf. Hyppolite, Introdução à filosofia da história de Hegel, p. 68-70. Hegel resolve a oposição abstrata entre finito e infinito com a criação de um sujeito absoluto, isto é, pela “[...] auto-relação absoluta de um sujeito que acede de sua substância à autoconsciência, portando em si tanto a unidade como a diferença do finito e do infinito” (Habermas, op. cit., p. 46).
[8] A filosofia kantiana é, portanto, para Hegel, um ponto fundamental na sua visada do conjunto da modernidade. Desse modo, não causará espanto que Hegel defina o interesse da filosofia moderna em termos bastante próximos aos do “giro copernicano”: “[...] o interesse principal, por isso, não é tanto pensar os objetos em sua verdade, mas sim pensar a própria unidade entre o pensar e a compreensão dos objetos, unidade esta que é o tornar-se consciente (Bewusstwerden) de um pressuposto objeto” (Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, p. 63).
[9] Sobre as aporias da solução hegeliana cf. Habermas, op. cit., p. 33-58. A aporia central, detectada por Habermas, é a seguinte: ao fundar a sua posição sobre o conceito de saber absoluto, Hegel se vê forçado a abdicar, em sua definição de modernidade, da própria possibilidade de uma crítica da modernidade, logo, de uma crítica da atualidade (Id., ibidem, p. 55-57).
[10] Cf. Habermas, p. 344-445; para a ultrapassagem da filosofia do sujeito cf. especialmente as pp. 361-2, 432-3 e 444-5.
[11] Habermas não descarta completamente a subjetividade. O que ele visa, mais propriamente, é uma reapropriação e transformação do conceito reflexivo de razão desenvolvido pela filosofia do sujeito (cf. Habermas, op. cit., p. 42).
Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.
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