Feuerbach e a Nova Filosofia: O homem reconhecido como ser sensível e intramundano

Wagner Santos
wagnercs@hotmail.fr
Introdução
Há de se convir que tomar apenas um momento da obra de um certo autor é também correr o risco de ofuscar todo o seu projeto, pois a empolgação com um ponto abordado pode, facilmente, conduzir o pesquisador à passar ao largo do alvo central daquele que escreveu a obra. Essa situação, infelizmente, repete-se com frequência quando se diz respeito a Ludwig Feuerbach(1804-1872). Pouco se diz para além da crítica da religião e das famosas Teses ad Feuerbach marxianas1. Pelo contrário, após a leitura de obras de especialistas como, por exemplo, Marx Wartofsky, a conclusão natural a que se chega é que, quando se trata de Feuerbach, por não ter conteúdo relevante além da hermenêutica da religião, já realizada em A Essência do Cristianismo, tudo depois é filosoficamente desinteressante2. Essa postura de recortar certo período da elaboração filosófica de Feuerbach e, simultaneamente, desconsiderar e desprezar o excedente, além de um arriscado “tomar parte como o todo”, obstrui a compreensão da filosofia feuerbachiana como um percurso traçado, como um esforço direcionado, como a pretendida necessária reforma da filosofia3. Reforma essa que, como afirma o nosso autor, “só pode ser a necessária, a verdadeira, a que corresponde à necessidade da época, da humanidade”4. Esse Lutero5 da filosofia, embora mostre-se negativo na crítica à religião e na crítica à filosofia, possui uma expressão positiva quando, de sua filosofia, o homem “não surge como um agregado contingente de naturezas diferentes”6, mas como ser integral (ganzes Wesen) e intramundano. E , segundo ele, a medida que for reformada, a Nova Filosofia (neue Philosophie) irá “reconduzir a [antiga] filosofia do reino das 'almas penadas' para o reino das almas encarnadas, das almas vivas”7.

Nova Filosofia: Projeto para uma filosofia reformada e do futuro(no presente)
O que Feuerbach pretende com a Reforma da Filosofia? Restabelecer a unidade que ele considera fundamental e perdida, “a unidade da filosofia e da vida ou da teoria e da prática”8.
Ora, seja no crítico da religião ou no crítico da filosofia tradicional, há , fundamentalmente, a oposição a toda e qualquer descaracterização dos homens reais e do meio em que estes estão inseridos. Ou seja, Feuerbach quer uma filosofia que apreenda o homem efetivo, real, genuíno, de carne e osso, e em um mundo efetivo, não-transfigurado. Nada de uma filosofia que trate de seres inumanos, despidos de seus atributos reais e em um mundo inventado, que lhe seja estranho.
E o que diz Feuerbach da filosofia tradicional? Ele a considera - junto à sua irmã, a religião cristã -, não só ineficiente, como prejudicial para a humanidade. Porque em ambas está presente -em germe- o movimento de exacerbada afirmação da individualidade, que implica na disseminação da autossuficiência humana, e na criação de um mundo “mais verdadeiro”, que implica na negação do mundo presente e na desnaturalização do homem9. Tais movimentos, portanto, precisam ser negados desde o seu fundamento, toda e qualquer referência que tente substituir o homem vivo, existente. Desse modo, há aqui um acerto de contas, onde, para que haja a filosofia nova, a tradicional deve ser abandona através de uma substituição de referencial. Isso significa abandonar o refencial das “nuvens” em prol da vida na terra. Em outras palavras, o outro plano precisa ser abandonado em prol desse, onde os homens concretamente vivem. Nessa reforma, “a neue Philosophie é necessariamente negação do saber já constituído e consciência assumida da impossibilidade de trilhar os velhos caminhos, na mesma medida em que é afirmação e valorização da realidade recusada pela filosofia passada”10. Ou seja, a Nova Filosofia surge como consideração das determinações físicas da existência(Dasein), das quais a filosofia tradicional apenas abstraiu e tornou em conhecimento incondicional, imutável, eterno e universal11 e, assim, perdeu o seu objeto(Gegenstand), o conteúdo real. Portanto a Nova Filosofia tem a sua distinção da tradicional pelo seu princípio. Como bem expõe Feuerbach:
A nova filosofia tem, pois, como seu princípio de conhecimento, como seu sujeito, não o eu, não o espírito absoluto, isto é, abstrato, numa palavra, não a razão por si só, mas o ser real e total do homem. A realidade, o sujeito da razão é apenas o homem. É o homem que pensa, e não o eu, não a razão. A nova filosofia não se apoia, portanto, na divindade, isto é, na verdade da razão por si só, apoia-se na divindade, na verdade do homem total. Ou: apoia-se, sem dúvida, também na razão, mas na razão cuja essência é o ser humano; por conseguinte, não numa razão sem ser, sem cor e sem nome, mas na razão impregnada com o sangue do homem. (FEUERBACH, 1998b, §50)
Agora, onde Feuerbach localiza a conexão entre pensamento e ser, espírito e mundo, eu e outro? Na Sinnlichkeit(sensibilidade12) . Explica então Feuerbach:
Eu sou eu — para mim — e ao mesmo tempo tu — para outrem. Mas só o sou enquanto ser sensível. O entendimento abstrato, porém, isola este ser-para-si como substância, átomo, eu, Deus — por conseguinte, só pode conectar arbitrariamente o ser para outro; com efeito, a necessidade de tal conexão é apenas a sensibilidade, da qual porém ele abstrai. O que eu penso sem a sensibilidade penso-o sem e fora de toda a conexão. (FEUERBACH, 1998b, §32)
Não é necessário inventar uma conexão quando ela já existe e esta é a Sinnlichkeit. E por ela, não só se dá a conexão entre o homem e o mundo efetivo, como “é ainda a sensibilidade[Sinnlichkeit], porque se manifesta como receptividade e carência, que pode dar origem a uma intersubjetividade como interpessoalidade concreta exercida.”13.
Feuerbach à medida que apreende o homem como ser sensível(sinnliches Sein) e reconhece como fundamental para o homem a sua percepção sensível (sinnliche Wahrnehmung), ele consegue “fundar uma visão unitária na qual o homem não surge como um agregado contingente de naturezas diferentes mas como um complexo de dimensões sensíveis diferenciadas.”(Idem). Isso é o afastamento de uma perspectiva dicotômica/dualista14 forjada, embora tenha se tornado tradicional, e uma aproximação da verdadeira harmonia que há na vida humana.

Conclusão
O projeto feuerbachiano de instauração da Nova Filosofia, não se limita a ser uma crítica da tradição e terapia para o tempo presente, mas se desdobra para o futuro quando se torna incentivo ao desenvolvimento das potencialidades humanas. E Feuerbach faz isso retratando os seres humanos como de fato são: seres sensíveis e intramundanos. Nesse processo articula-se o reconhecimento daquilo que “naturalmente” antecede e estrutura toda e qualquer atividade humana: a Sinnlichkeit. Através desse resgate de cunho filosófico-antropológico, Feuerbach traz à luz a integralidade do gênero(Gattungswesen) humano e do oceano do mundo15, em que este está encarnado. As implicações da filosofia feuerbachiana fornecem princípios para reflexões que ultrapassam a própria filosofia, passando pelos campos da pedagogia, direito, ética, política e psicologia ao reformular o fundamento desses campos: o homem(der Mensch).



REFERÊNCIAS

FEUERBACH, Ludwig. Necessidade de uma Reforma da Filosofia In Princípios da Filosofia do Futuro e: outros escritos trad.Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1988.
_______________________. Princípios da Filosofia do Futuro In Princípios da Filosofia do Futuro e: outros escritos trad.Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1988.
HARVEY, Van A. Ludwig Andreas Feuerbach. Acesso em: 26 de Maio 2013].
SERRÃO, Adriana Veríssimo. A Humanidade da Razão: Ludwig Feuerbach e o Projecto de uma Antropologia Integral. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.




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1 Isso quando a filosofia de Feuerbach não é reduzida a um ínfimo momento no desenvolvimento da filosofia de Marx, como algo carente de originalidade que se interpõe entre as construções do grande Hegel e as descontruções do célebre Marx.

2 HARVEY, Van A. Ludwig Andreas Feuerbach. . Acesso em: 26 de maio 2013.

3 Um dos textos redigidos após a Essência do Cristianismo, usado aqui inclusive, foi intitulado pelo próprio Feuerbach como Necessidade de uma Reforma na Filosofia. Outro se chama Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia. A começar pelo título, como não associá-lo ao reformador protestante do cristianismo Martinho Lutero? Ao menos pela ousadia deste e reviravolta causada, a associação não é apenas bem-vinda, como parece proposital.
4 FEUERBACH, Ludwig. Necessidade de uma Reforma da Filosofia In Princípios da Filosofia do Futuro e: outros escritos. Lisboa: Edições 70, 1988a, Introdução.
5 Cf. nota 2.
6 SERRÃO, Adriana V. A Humanidade da Razão: Ludwig Feuerbach e o Projecto de uma Antropologia Integral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. 390 p.
7 FEUERBACH, Ludwig. Princípios da Filosofia do Futuro In Princípios da Filosofia do Futuro e: outros escritos. Lisboa: Edições 70, 1988b, Notas.
8 SERRÃO, 1999, p. 90.
9 Sobre o que representa para Feuerbach a instauração da sua Nova Filosofia, esclarece Adriana Veríssimo Serrão: “O primado da felicidade sensível sobre a liberdade reflexiva e da cooperação convivente sobre a autonomia solitária abre-se à ideia de uma comunidade ética, síntese de felicidade pessoal, de solidariedade e de responsabilidade moral.” (SERRÃO, 1999, p. 390)
10 Idem, op. cit. , p. 93.
11 “Deus é o ser incondicionado, universal(...), imutável, eterno ou intemporal. Mas a incondicionalidade, a imutabilidade, a eternidade e universalidade são também, segundo o próprio juízo da teologia metafísica, propriedades das verdades ou leis racionais, portanto propriedades da própria razão.” (FEUERBACH, 1998a, §6)

12 Não há na língua portuguesa uma expressão correspondente para Sinnlichkeit. Esse expressão alemã não significa apenas a capacidade sensível do ser humano(âmbito antropológico), como engloba também o fato das coisas poderem ser sentidas(âmbito estético). A expressão portuguesa sensibilidade dá conta do primeiro significado, todavia não do segundo. Diante disso, insisto em usar a expressão alemã.

13 SERRÃO, op. cit., p. 390.

14 P. ex.: res congitans vrs. res extensa, paixão vrs. razão, ser vrs. pensar, espírito vrs. natureza.


15 Feuerbach cunha o seguinte imperativo categórico: “sê apenas um homem que pensa; não penses como pensador, isto é, numa faculdade arrancada à totalidade do ser humano real e para si isolada; pensa como ser vivo e real, exposto as vagas vivificantes e refrescantes do oceano do mundo;”(FEUERBACH, 1998b, §51) E alguns parágrafos depois ele dirá: “O filósofo absoluto, em analogia com o l‘état c’est moi do monarca absoluto e l‘être c‘est moi do Deus absoluto, dizia ou, pelo menos, pensava de si, enquanto pensador naturalmente, não como homem: la vérité c‘est moi. O filósofo humano, pelo contrário, diz: no próprio pensamento, também enquanto filósofo, sou um homem com os homens.”(FEUERBACH, 1998b, §61)

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