Entrevista: Jürgen Habermas


Jürgen Habermas: crise financeira e futuro dos Estados nacionais.

– O sr. deve estar decepcionado com os EUA, que, em sua opinião, foram o cavalo de tração da nova ordem mundial.

HABERMAS: O que nos resta a não ser apostar nesse cavalo de tração? Os Estados Unidos sairão enfraquecidos da dupla crise atual. Mas permanecerão por enquanto a superpotência liberal. A exportação mundial da própria forma de vida correspondeu ao universalismo falso, centralizado, dos velhos ricos. Em contraposição, a modernidade se alimenta do universalismo descentralizado do respeito igual por cada um. É do próprio interesse dos EUA não somente deixar de lado seu posicionamento contraproducente em relação à ONU, mas também colocar-se no topo do movimento reformista. Do ponto de vista histórico, a combinação de quatro fatores oferece uma constelação extraordinária: superpotência, mais antiga democracia na terra, a posse de um presidente liberal e visionário e uma cultura política na qual orientações normativas encontram um notável solo de ressonância. Os EUA sentem-se hoje profundamente inseguros devido ao fracasso da aventura unilateral, à autodestruição do neoliberalismo e também ao mau uso de uma consciência de excepcionalidade. Por que essa nação não poderia, como fez com tanta freqüência, recompor-se de novo e tentar integrar a tempo as grandes potências concorrentes de hoje -e potências mundiais de amanhã- em uma ordem internacional que prescinda de uma superpotência? Por que um presidente -que, saído de uma eleição decisiva, irá encontrar somente um espaço mínimo de ação- não desejaria, pelo menos na política externa, agarrar essa oportunidade razoável, essa oportunidade da razão?

– Falando assim, o sr. não arrancaria mais do que um riso cansado dos chamados “realistas”…

HABERMAS: O novo presidente americano precisa se impor contra as elites dependentes de Wall Street no próprio partido; ele também deveria ser afastado dos reflexos evidentes de um novo protecionismo. E os EUA precisariam, para uma meia-volta tão radical, do impulso amigável de um aliado leal, mas autoconsciente. Só pode existir um Ocidente “bipolar”, no sentido criativo, se a União Européia aprender a falar para fora com uma só voz. Em épocas de crise, talvez seja necessária uma perspectiva que tenha um alcance mais longo do que o conselho do “mainstream” embonecado do sucesso a qualquer custo.

– O sistema financeiro internacional entrou em colapso, e há a ameaça de uma crise econômica mundial. O que mais o inquieta?

HABERMAS: O que mais me inquieta é a injustiça social, que consiste no fato de que os custos socializados oriundos da pane do sistema atingem da forma mais dura os grupos sociais mais vulneráveis. Assim, solicita-se da massa composta por aqueles que, de qualquer modo, não pertencem aos que lucram com a globalização que ela de novo pague pelas conseqüências, em termos da economia real, de uma falha funcional previsível do sistema financeiro. Também em escala mundial, esse destino punitivo efetua-se nos países mais fracos economicamente. Esse é o escândalo político. Mas apontar agora bodes expiatórios, isso, sem dúvida, considero hipocrisia. Também os especuladores comportaram-se de forma conseqüente, nos limites da lei, de acordo com a lógica, aceita socialmente, da maximização dos ganhos. A política se torna ridícula quando moraliza, em vez de se apoiar no direito coativo do legislador democrático. Ela, e não o capitalismo, é responsável pela orientação voltada ao bem comum.

– Para os neoliberais, o Estado é somente um parceiro no campo econômico e precisa se apequenar. Agora esse pensamento não tem mais crédito?

HABERMAS: Isso dependerá do desenrolar da crise, da capacidade de percepção, por parte dos partidos políticos, dos temas públicos.

– Por que o bem-estar é hoje distribuído de forma tão desigual? O fim da ameaça comunista desinibiu o capitalismo ocidental?

HABERMAS: O capitalismo contido no âmbito dos Estados nacionais, cercado por políticas econômicas keynesianas, marcado por um bem-estar incomparável -do ponto de vista histórico-, já havia acabado logo após o abandono do câmbio fixo e do choque do petróleo. De fato, a ruína da União Soviética desencadeou um triunfalismo fatal no Ocidente. A sensação de ter razão, em termos da história mundial, tem um efeito sedutor. Neste caso, inchou uma doutrina político-econômica e a tornou uma visão de mundo que penetra em todas as esferas da vida.

– De que o mundo sentiu falta depois de 1989? O capital simplesmente se tornou poderoso demais diante da política?

HABERMAS: Ficou claro para mim, ao longo dos anos 1990, que as capacidades políticas de ação precisavam crescer atrás dos mercados, no plano supranacional. À globalização econômica deveria ter seguido uma coordenação política mundial e a legitimação adicional das relações internacionais. Mas as primeiras peças adicionais já ficaram atoladas no governo de Bill Clinton. Desde o início da modernidade, o mercado e a política sempre precisaram se contrabalançar de forma que a rede de relações solidárias entre os membros de uma comunidade política não se rompesse. Uma tensão entre capitalismo e democracia sempre existe porque mercado e política repousam sobre princípios opostos.

– Mas o sr. insiste no cosmopolitismo de Kant e acolhe a idéia de uma política interna mundial, introduzida por Carl Friedrich von Weizsäcker. Isso soa bastante ilusório -basta que se observe o estado atual das Nações Unidas.

HABERMAS: Mesmo uma reforma basilar das instituições centrais das Nações Unidas não seria suficiente. De fato, o Conselho de Segurança, o Secretariado, as cortes de Justiça precisariam urgentemente entrar em forma para uma imposição global dos direitos humanos e da proibição da violência -em si já uma tarefa imensa. Nesse plano transnacional, há problemas de distribuição que não podem ser decididos do mesmo modo que infrações contra os direitos humanos ou violações de segurança internacional, mas precisam ser negociados de forma política.
– Mas para isso já existe uma organização experimentada, que é o G-8.

HABERMAS: Isso é um clube exclusivo, no qual algumas dessas questões são discutidas de forma descomprometida. Entre as expectativas exageradas que se ligam a essas encenações e o resultado medíocre do espetáculo midiático sem conseqüências, existe uma desproporção traiçoeira.

– O discurso sobre a “política interna mundial” soa antes como os sonhos de um vidente.

HABERMAS: Ainda ontem a maioria consideraria não realista aquilo que ocorre hoje: os governos europeus e asiáticos superam-se mutuamente em sugestões de regulamentações em vista da institucionalização insuficiente dos mercados financeiros.

– Mesmo que novas competências fossem atribuídas ao Fundo Monetário Internacional, isso ainda não seria uma política interna mundial.

HABERMAS: Não quero fazer previsões; em vista dos problemas atuais, o que podemos fazer, na melhor das hipóteses, são considerações construtivas. Os Estados nacionais deveriam, de forma crescente e, com efeito, em seu próprio interesse, se perceber membros da comunidade internacional. Quando hoje falamos de “política”, estamos amiúde falando da ação de governos que herdaram uma autoconcepção como atores coletivos, que decidem de forma soberana. Mas essa autoconcepção de um Leviatã, que, desde o século 17, se desenvolveu junto com o sistema de Estados europeu, hoje já não é mais vigorosa. O que chamávamos ontem de “política” muda diariamente seu estado.

– Mas como isso se coaduna com o darwinismo social, que, como o sr. diz, se expande novamente na política internacional desde o 11 de Setembro?

HABERMAS: Talvez se devesse dar um passo atrás e observar uma conjuntura maior. Desde o final do século 18, o direito e a lei permearam o poder do governo, constituído politicamente, e lhe negaram, na circulação interior, o caráter substancial de um simples “poder”. Mas ele guardou para si uma quantidade suficiente dessa substância, apesar da rede de organizações internacionais e da força de coesão crescente do direito internacional. Ainda assim, o conceito de “político”, cunhado no âmbito do Estado nacional, está se liquefazendo. Na União Européia, por exemplo, os Estados-membros, no passado e no presente, guardam o monopólio da força e também transpõem, mais ou menos sem reclamações, o direito que é determinado na esfera supranacional. Essa mudança de forma do direito e da política também se relaciona a uma dinâmica capitalista que pode ser descrita como interação entre abertura forçada funcionalmente e fechamento sociointegrativo em níveis cada vez mais elevados.

– O mercado arromba a sociedade, e o Estado social a fecha novamente?

HABERMAS: O Estado social é uma proeza tardia e frágil. Os mercados e as redes de comunicação sempre em expansão já tiveram uma força de arrombamento, que, para o cidadão individual, é, ao mesmo tempo, individualizante e libertadora. A isso, porém, sempre seguiu uma reorganização das velhas relações de solidariedade numa moldura institucional expandida. Esse processo iniciou-se no início da modernidade, quando os estamentos dirigentes da Alta Idade Média se tornaram, passo a passo, parlamentares -como na Inglaterra- ou foram subjugados por reis absolutistas -como na França. Essa domesticação jurídica do Leviatã e do antagonismo entre as classes não foi simples. Mas, pelas mesmas razões, a bem-sucedida constitucionalização do Estado e da sociedade aponta hoje, após um surto de globalização econômica, para uma constitucionalização do direito internacional e da esfacelada sociedade mundial.

Entrevista: Noam Chomsky


Entrevista concedida por Noam Chomsky a Peshawa Abdulkhaliq Muhammed para o jornal Kurdistani Nwe, em 5 de julho de 2009:

- Por que você acha que as pessoas nos EUA e mesmo em outros lugares do mundo têm sido otimistas sobre Obama e sua administração?

Chomsky: Duas razões básicas. Uma é que eles estão contentes de se livrarem do Bush. A impudente arrogância da sua administração e seu desdenhoso desafio à opinião pública mundial levou os EUA a posicionar-se no mundo dos pontos baixos da história. Quase qualquer substituição teria sido bem-vinda. A segunda razão é que Obama se apresenta como uma pessoa simpática que oferece parceria e conciliação, e como uma espécie de "tábua rasa" na qual as pessoas podem escrever suas esperanças e desejos. A questão perigosa, sempre, é o que é a substância por trás da superfície agradável? Já escrevi sobre isso em outro lugar (como outros), e não vou repetir. Em breve, ele estará chegando perto de cumprir a previsão de Condolezza Rice, de que seu governo vai estender a política externa do segundo mandato de Bush, que tomou, em relação ao primeiro, uma linha mais suave e menos conflituosa em diversos aspectos.

- Como você avalia a política dos EUA no governo Bush em relação ao Iraque, em geral, e, especificamente, contra os curdos? E como você espera que seja com Obama?

Chomsky: A administração Bush adotou uma posição relativamente favorável para os curdos, porque eles eram a um segmento da sociedade do Iraque, que foi favorável à invasão e ocupação - relativamente. Ela se opunha fortemente a autonomia curda, por razões geoestratégicas gerais. Ela provavelmente viu as partes curdas do Iraque como uma base em potencial para o poder dos EUA, alinhados mais ou menos abertamente com Israel, o cliente mais importante de Washington na região. Obama disse muito pouco, mas eu esperaria que suas políticas sejam semelhantes.

- Qual será o impacto do “plano de retirada do Iraque", de Obama, sobre a estabilidade do Iraque e do processo político lá?

Chomsky: Obama indicou que vai cumprir o Acordo do Estatuto das Forças que Bush foi obrigado a aceitar, depois de recuar, passo a passo, em face da multidão de resistência não-violenta que o exército de ocupação não pode controlar, e no fim, abandonar os principais objetivos da guerra. Neste momento há um conflito sobre o referendo que é exigido pelo SOFA - Status of Forces Agreement (Acordo do Estatuto das Forças). Obama é pressionado pelo governo iraquiano para não realizá-lo. As razões são abertamente declaradas: sua administração teme que a população convoque mais rápido a retirada das forças de ocupação.

- Na sua opinião, o que uma abordagem liberal internacionalista, do tipo que Obama parece favorável, trará às ambições separatistas, em geral, e a questão curda, em particular?

Chomsky: A palavra importante na questão é "parece". A postura pública de Obama é vindoura e apropriada, e tem uma aura de internacionalismo liberal. Não há nenhuma indicação de que ele iria considerar um Curdistão independente, e é altamente improvável, em função dos compromissos geoestratégicos dos EUA. A questão da justiça é principalmente uma questão de retórica, como no passado. Falta aos curdos e outros a capacidade de clareza sobre esses assuntos, e não sucumbirem às ilusões. O melhor conselho é: prestem atenção nos fatos, e não deixem-se ser seduzidos pela retórica e pelas promessas vazias.

- "Nós não estamos em guerra com o Islã", isto é o que Obama disse durante sua recente visita à Turquia. Você acha que, como sugerem alguns, esta nova abordagem em relação ao mundo islâmico será o "Fim do Choque de Civilizações"?

Chomsky: Não houve início ao "choque de civilizações", de modo que não pode haver um fim. Basta considerar as circunstâncias no momento em que a doutrina foi promulgada por Bernard Lewis e Samuel Huntington. O estado muçulmano mais populoso era a Indonésia, um aliado próximo EUA desde 1965, quando o general Suharto realizou um golpe assassino, matando centenas de milhares de pessoas e abrindo os ricos recursos do país para as sociedades industriais. Ele continuou um amigo leal, apesar dos inúmeros crimes dentro e fora do país, entre eles a invasão do Timor Leste, que chegou perto do genocídio como qualquer evento do período moderno. Permaneceu "O nosso tipo de cara", como a administração Clinton declarou, em 1995, e manteve esse status, até que ele perdeu o controle e os EUA determinou que seu tempo havia acabado. O mais extremo estado muçulmano fundamentalista foi a Arábia Saudita, o mais velho e mais valioso aliado de Washington na região. Naquele tempo, Washington estava levando suas guerras assassinas na América Central a um final sangrento, visando especificamente a Igreja Católica. Seus praticantes da "teologia da libertação" procuraram trazer as lições pacifistas radicais do Evangelho para a sociedade camponesa que estava sofrendo sob o jugo imposto pela tirania dos EUA. Isso foi claramente inaceitável, e eles se tornaram as primeiras vítimas das guerras terroristas de Washington. Uma das propagandas da famosa Escola das Américas é o orgulho pelo exército dos EUA que "derrotou a teologia da libertação". Se continuarmos, nós encontramos confrontos familiares, mas nenhum "choque de civilizações" - uma noção que foi construída no fim da Guerra Fria como um pretexto para as políticas empreendidas por outras razões, também familiares. As políticas de Bush evocaram uma enorme hostilidade no mundo muçulmano. Muito sensatamente, Obama está tentando reduzir a hostilidade, embora não haja indicação de uma mudança substancial nas políticas ou motivações.

- Qual é o seu conselho e recomendações para a administração de Obama em relação a política dos EUA no Iraque e aos curdos?

Chomsky: Não posso responder. Eu discordo com os fundamentos desta política, e não posso dar conselhos nesse âmbito.
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