Nietzsche, pensador tipicamente confinado nos horizontes do pensamento alemão do século XIX, emoldura seu romantismo aristocrático-heróico, raivosamente anti-moderno, com uma narrativa histórico-dialética exemplarmente hegeliana - mais especificamente, jovem hegeliana – a seu serviço. Aparentemente é a ela, junto com seu delirante biologismo romântico-vitalista, também típico do século XIX, que ele recorre para autorizar o caráter radicalíssimo, inflado, retumbante, ultra-epocal, que deseja atribuir aos seus insights (alguns muito interessantes), para coroar-se como o Anti-Cristo lui-même, o Primeiro Imoralista, o incontrastado “Bad Boy” da filosofia ocidental - perfil de que, entretanto, dedicados comentadores apologéticos querem inadvertidamente privá-lo. É aparentemente sua narrativa histórica teológico-apocalíptica que sustenta o tom normativo irado de sua filosofia abertamente racista-escravocrata, junto com as empobrecedoras distinções binárias que marcam o conjunto de seu pensamento. É com a ajuda de tal narrativa (e de um cientificismo risível) que Nietzsche deforma metafísica e teologicamente a oportunidade de renovação que se oferece ao pensamento europeu depois do colapso da metafísica e da teologia; oportunidade cuja realização havia-se esboçado precursoramente em perfis mais desinflados, de autores como Rabelais, Voltaire e La Rochefoucauld (para tomar ao pé da letra seu cumprimento aos franceses), além de em jovens hegelianos menos exaltados. O que marca mais do que jovem-hegelianamente sua narrativa histórica fundacionista é essencialmente a idéia de um “Erro” epocal inicial (o Ideal Ascético), caracterizado como Grande Inversão/Negação (da “Vida”), confrontado então por sua Crítica Absoluta, esta como uma igualmente epocal Negação da Negação, ou Inversão da Inversão. E é também, antes dessa Ausgang, o desenvolvimento do Grande Mal, num percurso lógico-dialético, imanente, necessário, tomado como escalada, que desemboca então naquilo que já se encontrava desde sempre, “em germe”, na própria Crença original: seu aparente contrário, o Niilismo, agora explícito. E (sua marca jovem-hegeliana) é ainda a idéia nietzschiana do seu próprio tempo (a Modernidade) como de agudização do ascetismo e precipitação do niilismo (enganosamente disfarçadas de superação), na direção de uma Crise/Hecatombe sem precedentes sobra a Terra, um Juízo Final como véspera do “Reino” dos valores transvalorizados. Embora referida a outra figura que não exatamente a do sujeito clássico, até mesmo a tópica, recorrente no jovem hegelianismo, da alienação/hipostasiação de uma criação dos homens (no caso, os valores), e da sucessiva reapropriação, por eles, de sua autoria (com conseqüências hiper-revolucionárias), encontra em Nietzsche uma de suas características versões. A sua é, então, mais uma filosofia do futuro, antecipado como passado; é um pensamento aparentemente em maus termos com o devir e com a finitude. Que coloca a si mesmo e ao seu tempo como um absoluto e especialíssimo divisor de águas da “História”, e põe a própria existência finita, individual, de Nietzsche, como “Destino”, como histórico-universal, sobre-humana, gargalo de uma ampulheta pela qual devem obrigatoriamente passar as vastas areias do tempo. A inversão, a inversão da inversão, a lógica determinante do desenvolvimento histórico por vir, permitem a Nietzsche, mais do que hegelianamente, como weltregierender Geist, adivinhar o futuro e narrá-lo como passado, dominado pelo movimento dialético da Potência Objetiva da História. Hegel e seu Espírito Absoluto não pretenderam tanto.
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