Roberto Mangabeira Unger é possivelmente o mais importante filósofo brasileiro dos nossos dias. E o mais interessante – a julgar pelo seu recente O Eu Despertado: Pragmatismo sem Peias[2]. Professor em Harvard desde os anos 1970, com uma obra respeitável e extensa, ele é igualmente uma referência importante no cenário intelectual e acadêmico norte-americano na área da teoria social e política. Unger produziu até aqui, avalia G. Hawthorn, “o que poderia ser a mais poderosa teoria social da segunda metade do séc. XX”[3]. É “uma cabeça filosófica saída do Terceiro Mundo para se tornar profeta do Primeiro”, acrescenta Perry Anderson, para quem Unger “faz parte da constelação de intelectuais do Terceiro Mundo ativa e respeitada no Primeiro, sem ter sido assimilada por este”.[4] Ele tem mais a ver com o Brasil do que isso, porém, e não apenas por ter sido ministro para assuntos estratégicos, do governo brasileiro, de 2007 a 2009.
No Política: Um Trabalho de Teoria Social Construtiva (3 vols.), de 1987[5], Unger já se mostrava um pensador que, mesmo num outro país, pensa o Brasil e a partir do Brasil – tanto quanto a partir do mundo mais amplo e diversificado, pós-colonial, ora emergente. “Um homem cuja cabeça está em outro lugar”, “um filósofo brasileiro” empenhado no “romance de um futuro nacional” – como o vê Richard Rorty, num ensaio cheio de terna simpatia pelo projeto. No Política, Unger encara a “instabilidade exemplar do Terceiro Mundo” e, dentro dela, “o exemplo brasileiro”, como prenhes de possibilidades, frente à relativa falta de perspectiva do Norte desenvolvido. E o faz - bem percebe Rorty - à maneira de Walt Whitman, que, no séc. XIX, contrastava romanticamente a promessa de uns Estados Unidos ainda por fazer, com uma Europa já realizada, voltada para o passado. Unger, analogamente, caracteriza agora “a cultura do pensamento social e histórico”, do Atlântico Norte, como “alexandrina” e “decadente”, em contraste com um Sul obrigado a ser original e inventivo, mesmo que apenas para alcançar algumas das conquistas do Primeiro. Ele ouve soar no Brasil, apesar de tudo, “a voz de uma oportunidade transformadora”. Onde homens e mulheres poderiam encarar a luta política como “participação num experimento exemplar”, que configurasse “outras opções possíveis para a humanidade”[6]. Essa é a visão que sustenta, do mundo e do Brasil, enquanto procura criticar e ultrapassar, já a partir de seu Conhecimento e Política (1975), as limitações dos conceitos e instituições democrático-liberais clássicos. Em prol de uma democracia viva e transformadora, animada por indivíduos criativos e rebeldes.
Um Filósofo Brasileiro - Neo-Desenvolvimentista – de Ultramar
Nascido no Brasil, de mãe baiana e pai alemão-americano, Mangabeira Unger formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, para tornar-se em seguida aluno e logo professor de Harvard. E parece ter herdado traços do talento poético da mãe e da vocação política do avô materno, que foi governador e senador da Bahia. Reconhecível hoje, para o público brasileiro, principalmente por seu forte sotaque norte-americano, ele pode ser considerado um “filósofo brasileiro de ultramar”. O que, entretanto, não há de ser um problema, em comparação com o que em geral tem sido a filosofia no Brasil nas últimas décadas. Constituído por professores brasileiros sem sotaque estrangeiro, o Departamento de Filosofia da USP, que se tornou matriz formadora da filosofia acadêmica brasileira, já foi apelidado, ao reverso, de “departamento francês de ultramar”[7]. No caso, pode-se acrescentar, uma importação sem transferência de tecnologia: Aprendemos com os franceses, não a fazer filosofia, que isso ficou para eles próprios, mas simplesmente a estudar os filósofos europeus históricos, como seus eternos – competentes e benevolentes – comentadores. A essa influência marcante - antípoda, em especial, do que se faz nos Estados Unidos em termos de filosofia - Unger escapou.
Seria plausível fantasiar que ele, em vez disso, foi de algum modo marcado pelo viés nacionalizante que a elaboração brasileira de pensamento conheceu, no Rio, entre 1960 e 1970. E imaginar que seu neo-desenvolvimentismo democrático-radical, filosófico, retoma criticamente o marco hegeliano-sartreano do pensamento de Álvaro Vieira Pinto. Pois algo disso encontra-se sem dúvida em The Self Awakened: Pragmatism Unbound – ao mesmo tempo uma súmula, uma introdução e um coroamento da obra de Unger. É o mais puramente filosófico de seus trabalhos, mas é também um texto programático, entre ensaio e manifesto mobilizador, enfaticamente marcado por seu tom visionário, romântico e absolutamente assertivo. Pragmatismo liberto (unbound) evoca, não por acaso, Prometeu liberto, o rebelde herói mitológico, emancipador, dos românticos do século XIX, de Goethe, Byron, Sheley – e Marx.
Pragmatismo Jovem-Hegeliano e Rebeldia Romântico-Prometéica
No Self Awekened, Unger começa por desenvolver, como suporte de sua proposta política, o que chama de pragmatismo radical, liberto de limitações “metafísicas” e “naturalistas” remanescentes em Peirce, James e Dewey, e oposto a suas “emasculadas” (moderadas) versões contemporâneas. Ele mostra preocupação por estar esposando a posição filosófica mais própria da superpotência hegemônica. Um escrúpulo, porém, desnecessário. Primeiro porque, no establishment filosófico estadunidense, a “doutrina oficial” tem sido, de há muito, a filosofia analítica. Segundo porque pessoas um pouco informadas já sabem que o pragmatismo americano é historicamente uma posição filosófica progressista e generosa, de esquerda. E, por fim, porque se trata de um desenvolvimento filosófico influenciado pelo pensamento de Kant e Hegel, que encontrou expressões também fora dos EUA e é hoje a auto-denominação escolhida de filósofos críticos, não americanos, como Habermas e Wellmer[8].
Em comparação com outras expressões contemporâneas do pragmatismo, a de Unger, original, nada ortodoxa, de fato recupera e radicaliza seu sentido prático-criador e sua vocação democrática (assumidos entre nós, na educação, por Anísio Teixeira). Ao mesmo tempo, acentua tremendamente a filiação “jovem hegeliana” que ele já exibe em Dewey. Com uma filosofia que incorpora ingredientes de Bruno Bauer, Karl Marx e Max Stirner, é curioso ver Unger retomar no século XXI a noção hegeliana de auto-consciência e a dialética dissolvedora/reapropriadora que opõe a livre iniciativa prático-transformativa dos homens, às estruturas “naturalizadas” e “congeladas” - da sociedade, da política e do pensamento, até aqui. Unger, entretanto, para seu propósito teórico, foi mesmo bater na porta filosófica certa[9]. Conseguindo, por essa via, renovar, à sua maneira, as opções e concepções da esquerda, há tempos paralisada entre a democracia tradicional e o marxismo como “linguagem” única.
The Self Awakened não menciona o Brasil nem qualquer outro país em particular. Mas pode ser tomado como uma elaboração filosófica que corresponde ao “romance de um futuro nacional” de Unger. Uma elaboração próxima do que tenho defendido como “poética pragmática”, e um exemplo do que chamo de “filosofia como coisa civil”[10]. Certamente pode-se questionar o Self Awakened por assertivo demais (dialógico de menos), por um tanto esquemático (desculpável, num “manifesto”) e mesmo por juvenilmente romântico (o que pode ser politicamente arriscado). Discutir o livro de Unger, entretanto, é uma tarefa que promete, de qualquer modo, resultado bom e certo para a comunidade filosófica brasileira, talvez exageradamente “histórico-exegética” ou mesmo “escolástico-academicista” (tudo que o Self Awakened não é). Porque, corroborando-o ou criticando-o, alguns de nós poderíamos até, ao fazê-lo, acabar de fato nos apanhando – surpresos - fazendo filosofia. Como Unger. Finalmente.
[1] Professor titular do Departamento de Filosofia da UFBA (www.jcrisostomodesouza.ufba.br).
[2] The Self Awakened: Pragmatism Unbound (Harvard Univ. Press, 2007), ainda não traduzido para português.
[3] Hawthorn, Practical Reason and Social Democracy, na Northwestern University Law Review, Summer, 1987, 81 Nw. U.L. Rev. 766.
[4] Anderson, Afinidades Seletivas, Boitempo, 2002, p.176.
[5] Unger, Politics: A Work in Constructive Social Theory, Cambridge U. P., 1987.
[6] Apud Rorty, em “Unger Castoriadis, and the romance of a national future”, Essays on Heidegger and Others (Cambridge U. P., 1991), p. 177ss.
[7] É a caracterização que lhe pôs um de seus membros, o Prof. Paulo Arantes, no livro do mesmo nome (Paz e Terra, 1994)
[8] Habermas define-se como pragmatista, o que a maioria dos habermasianos parece não querer ver; como em Verdade e Justificação, onde critica Rorty por não sê-lo o suficiente. E Wellmer pretende ser mais pragmatista do que ambos, em “Pragmatismo sem Idéias Reguladoras” (em Jürgen Habermas 70 Anos, Tempo Brasileiro, 1999).
[9] Com ironia, mais que despiste, Unger prefere apontar, para filiação filosófica do livro, “os ensinamentos de Nicolau de Cusa” (The Self…, p. 28).
[10] Ver meu “A Filosofia como Coisa Civil”, em A Filosofia entre Nós (Ed. Unijuí, 2005).
(Texto publicado no Jornal A Tarde, dia 28 de novembro de 2009)